29 de maio de 2011

O Cadáver de Terno Cinza

Um homem morreu na cidade hoje. Seu corpo foi encontrado numa calçada quando as pessoas saíram de casa para cuidar das próprias vidas. Estava deitado de costas no concreto áspero. Seus olhos abertos encaravam a sarjeta, inertes e desprovidos de qualquer espécie de brilho.

Trajava um terno cinza e judiado, além de meias e sapatos negros. Era um homem como outro qualquer, que poderia estar acordando naquele momento, ou já dentro do ônibus a caminho do trabalho. Poderia estar pensando sobre qualquer coisa, poderia estar sorrindo ou chorando, mas não pensava ou sentia nada. Estava morto.

Ao amanhecer, estava abandonado e completamente sozinho, acompanhado somente por uma pequena vela deixada ali por uma carpideira piedosa. Logo, os curiosos interromperam suas vidas e formaram um círculo anônimo ao seu redor. Alguém mais dedicado deu-se ao trabalho de cobrir o corpo com o caderno de esportes do jornal.

Mas a maioria das pessoas apenas olhava de relance ao passar pelo local, somente para descobrir o motivo da pequena multidão de curiosos. E, ao verem o cadáver ali, afastavam-se rapidamente fingindo que não haviam encontrado um morto com o rosto colado no chão, beijando o concreto com o canto dos lábios.

Logo, a cidade ao redor do morto explodiu e ganhou vida. Ônibus passavam vomitando poluição, carros disparando buzinas e pessoas correndo para lá e para cá. Portas de aço foram levantadas, correntes foram recolhidas, luzes e aparelhos de ar condicionado foram ligados. E o homem continuou ali com sua morte sendo admirada piedosamente pelas pessoas.

Ainda estava ali quando a polícia chegou, retirando os jornais e a vela. Seu corpo não apresentava sinais quaisquer de violência. Não havia sangue, não havia ferimentos. No bolso de trás da calça, uma carteira com poucas notas de dinheiro, e nenhum documento. Não havia nome. Apenas uma foto que o mostrava ao lado de uma mulher.

Na foto, estava vivo e radiante. Seus olhos brilhavam e o terno parecia um pouco mais novo. Estava abraçado a ela, com os rostos colados e sorrindo em direção à câmera. Seus olhos brilhavam e ele não conseguia disfarçar a felicidade que sentia. Ao fundo, uma multidão caminhava anonimamente, sem sequer se dar conta de que um retrato estava sendo feito.

Mas quem olhasse a foto durante alguns segundos poderia jurar que algo em seus olhos denunciava uma preocupação muito maior com a felicidade dela do que com a própria. Mesmos congelados na fotografia, seus olhos pareciam querer escorregar em direção ao delas e ver se a moça estava tão feliz quanto ele, se o sorriso de seus lábios precisaria de uma fotografia para ser eterno.

Ao examinarem o corpo, nenhum sinal de como o homem de terno cinza havia morrido. Talvez a autópsia determinasse envenenamento, mas aparentemente ele havia falecido por causas naturais. Ao ouvir um detetive resmungando isso, boa parte do círculo de anônimos se dispersou decepcionada, deixando mais sozinho ainda o homem que podia apenas olhar os pés das pessoas.

E quando o carro do legista chegou para retirar o corpo, ele se viu agora em uma maca, sendo levado em direção a uma gaveta escura. A multidão se fora, acabara o assunto. E ninguém reparou na pequena página esquecida na sarjeta. Amarelado e velho, o papel estava na mão do homem no momento em que ele caiu morto.

E, ao ver seu dono partir, a página decidiu voar com o vento, perdendo-se para sempre pela cidade, como uma memória de infância. E voou em direção ao centro, onde logo se dissolveria na água das chuvas que corria pela sarjeta, indo parar no esgoto da cidade. E levando com si todas as evidências de que um crime havia sido cometido ali.

Pois ela era a única prova de que o homem de terno cinza havia morrido por ter seu coração partido.


4 leitores:

d. disse...

Não há entendimento nem quando sobram evidências. Os vivos não valem muito, os mortos menos ainda. Isso também se dá aos corações partidos. Tudo parece não mais importar.

...
Maaaas o que realmente importa é que tu postou hoje o/
Obrigada, Rob!

@dari_rizzi

Camila disse...

Às vezes as menores evidências são as mais reveladoras, assim como os gestos mais simples são os mais significativos.

Lidia disse...

incrível. adorei esse texto. fantástico. parabéns!
Lídia

vignarulo disse...

very nice blog!!!!!!!!!

 

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