16 de maio de 2011

Dez Minutos

Passava o dia cuidando da vida. Era ainda bastante ativa, então fazia os dias serem longos.

Pela manhã, fazia compras e ia ao banco, resolvendo tudo o que precisava ser resolvido na rua. Voltava para casa pouco antes do almoço e ainda encontrava tempo para anotar as receitas da moça da televisão. Tinha cadernos e cadernos, era seu grande hobby. E almoçava sozinha, em silêncio. Às vezes folheava uma revista, às vezes levava seu prato à varanda e comia sem pressa, olhando as pessoas passando pela rua abaixo de seu antigo apartamento. Não demorava até o neto chegar depois da escola. Ele passava as tardes em casa, brincando no chão da sala, ou fazendo um cochilo. E ela arrumava a casa com cuidado para não acordá-lo, mas também nunca se esquecia do fazer um suco e preparar um prato de biscoitos para o menino, no meio da tarde. E com ele ficava até o final da tarde, quando a filha saía do trabalho e passava em sua casa para buscar a criança. Papeavam tomando café, e depois ela jantava sozinha, na frente da TV, acompanhando suas novelas até a hora de apagar tudo e ir para o quarto.

Era ainda bastante ativa, então fazia os dias serem logos. Passava o dia cuidando da vida.

Mas, quando deitava no quarto escuro, sentindo o lençol gelado sob seu corpo, se permitia parar de pensar, parar de agir, parar de fazer. E se permitia sentir.

Em todas as noites, antes de dormir, se dava o direito de pensar e sentir a falta do marido, falecido há anos, mas que ainda a observava o dia todo do retrato colocado acima da televisão. Mas não precisava do retrato para lembrar-se do seu rosto, de seus olhos castanhos escuros e da textura de sua pele.

A cada noite, se lembrava de uma coisa.

Em algumas delas, lembrava-se de alguns momentos que passaram juntos. Não os grandiosos que figurariam nas novelas que gostavam, mas naqueles pequenos, que construíam, tijolo por tijolo, a história de um casal. A tarde quente em que foram surpreendidos pela chuva; o dia em que ele comprara, de surpresa, o vestido colorido que ela vira numa revista, o jeito que ele segurava a mão dela quando passeavam na praia.

Às vezes, queria escapar de algumas memórias mais doloridas, mas não conseguia. O cheiro dele em suas roupas, a maneira com a qual ele sussurrava o nome dela no meio do abraço, e, principalmente, quando se conheceram e ele passava horas contando histórias de sua infância. Ela se apaixonara tanto pelas histórias, que a faziam rir, como pelo fato de que sabia terem uma vida inteira pela frente, que a fazia sonhar.

Mas, às vezes, se entregava às recordações, sem dó nem piedade de si mesma. E ali, deitada de lado no quarto escuro, mergulhava de uma vez em todos os dias que haviam vivido juntos.

Sua mente girava em torno de pedaços desconexos de frases coloridas e imagens com sons de promessas de amor eterno, seu coração se despedaçava em telegramas de saudade e promessas de cuidado eterno, e sua alma dançava silenciosamente com o som das risadas conjuntas que mostravam, aos vizinhos, que naquela casa havia um final feliz, e que esta felicidade viveria para sempre.

E quando a doçura das memórias dava lugar ao amargor da cama vazia ao seu lado, quando o som das risadas dele deixava o palco, substituído pelo silêncio do retrato, ela se permitia sentir. E, ainda tomada pelas lembranças de leveza e amor, era assolada pelo peso e pela solidão de uma vida incompleta e se permitia chorar.

E ali, deitada no escuro, escondida do mundo, chorava copiosamente de saudade. Corava cada livro e disco que havia dado a ele, chorava cada filme que assistiram juntos, chorava cada dança, cada refeição. Chorava os milhares de “bom dia” e “dorme bem” de tantos anos.

Chorava a dor de ter perdido, a dor de não ter mais, a dor de não ser mais. Chorava pela injustiça da vida e pela crueldade do tempo. Chorava para não explodir devido a um amor que ficava guardado em seu peito, sem jamais poder ser entregue novamente a quem de direito. Chorava aliviando o peito da saudade que lhe parecia tão certa e que jamais passaria.

Chorava por ele. Chorava por si.

Chorava por ambos.

Chorava até adormecer, pedindo baixinho para ele aparecer em seus sonhos, ao mesmo tempo em que temia que ele aparecesse em seus sonhos.

E, no dia seguinte, acordava e levantava-se cedo para cuidar da vida. Fazia seu café da manhã, regava suas plantas e planejava as tarefas do dia, ignorando o retrato que, acima da televisão, lhe sorria com afeto. E, assim que tomava banho e trocava de roupa, seu dia começava de verdade. Passava o dia cuidando da vida. Era ainda bastante ativa, então fazia os dias serem longos. Porque sabia que todas as noites, os últimos dez minutos do dia seriam mais longos que o dia todo.

Porque vivia sua vida inteira em dez minutos.

Todas as noites.

Sozinha.


19 leitores:

Alessandra Costa disse...

Lindo, simples assim.

.a que congemina disse...

Caralho, Rob.

Caralho.

Ana Savini disse...

Que triste isso.
Eu não quero terminar assim. Sozinha.

Francine Ribeiro disse...

Triste, muito triste.
E mais triste ainda pensar que devem existir muitas pessoas "bastante ativas, que passam o dia cuidando da vida e fazem os dias serem longos" e que esse dia longo termina com a solidão.

Gabi Bianco disse...

Ela não está sozinha, todas as noites. :)

Jullia A. disse...

Porra.

Camis disse...

Vc devia ser proibido de escrever... :'(

Isabella disse...

rob!

me tocou. juro. lindo demais! que sensível, delicado, forte...

reticências...

Odil disse...

Vá à merda, sr. Rob. Além de o texto ser ótimo, me fez lembrar que escrever desse jeito desopila a alma. Grato =)

Sir Lucas disse...

Pensei que fosse um texto sobre simples solidão, tanto que quando chegou na parte do neto, pensei "pelo menos ele na vida da mulher" .
Daí vem você com o tapa na cara que é a segunda parte do texto. O misto de solidão com saudade que destrói qualquer coração, por mais duro que seja. Nada, nada pode ser pior do que ter saudade daquilo que já não mais se tem.
Caralho, Rob. Caralho.

MarianaMSDias disse...

Sir Lucas, pior é ter saudade daquilo que nunca se teve.

Engraçado que tantos (exceto a Gabi Bianco) tenham visto apenas solidão no texto... Pois eu vejo a alegria de uma vida completa que, embora obrigada a se encerrar em tempos diferentes tem a mais plena consciência de que foi muito bem vivida...

Triste são as vidas eternamente incompletas de que nunca verdadeiramente se entregou e que vive na solidão de, sequer, ter recordações para esperar o sono.

Para essas, o dia não termina nunca.

Lindo texto, Rob! ;o)

Mario Cau disse...

Grande Rob... que texto tocante!
Acabei com um sentimento de mixed emotions aqui, equilibrando a doçura dessa senhora com a dor que ela ainda sente...
Saudade, de fato, é uma coisa que mexe demais.
Sortudos são so poetas da língua portuguesa, que têm essa palavra pra usar.
Abração!

Marina disse...

Acho que esse é o meu maior medo.

littlemarininha disse...

Meu maior medo é não ter do que me lembrar quando chegar a noite.

Ana Savini disse...

Não acho que alguém que esteja satisfeita com o que teve durante a vida possa se sentir tão sozinha assim. O sentimento de conformismo também existe e alguém que se sentisse com uma vida completa poderia sim se sentir sozinha e triste em algumas noites mais melancólicas, mas dificilmente iria se sentir assim todos os dias. A menos que sofresse de depressão.

Bia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bia disse...

...(suspiros)Que texto! Ao ler o texto a mente vai criando a fisionomia dos personagens, as cenas diárias com detalhes que nos levam a creditar que conhecemos tais pessoas.

Suspiros e lágrimas. Muito lindo, parabéns

Unknown disse...

"Chorava a dor de ter perdido, a dor de não ter mais, a dor de não ser mais. Chorava pela injustiça da vida e pela crueldade do tempo."
Essa é a pior parte. Não do texto, mas da vida. :/

Fagner Franco disse...

Caralho, Rob!

 

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