26 de julho de 2010

Despedida

– Este lugar está ocupado?

Quem perguntou foi um homem de meia idade, com capa de chuva e um jornal amassado e enrolado sobre o braço. Os dois estavam sentados, em silêncio, na mesa do café da estação em silêncio. Ela tomando chá. Ele, café. Ambos titubearam, mas, depois de alguns segundos, ele respondeu:

– Não.

O homem agradeceu, sentou-se entre os dois. Pediu uma água e abriu o jornal. Ele e ela permaneceram em silêncio, se olhando. Disfarçadamente. O homem de meia idade não sabia que eles se conheciam.

E eles se conheciam há muito tempo. Coisa de dez anos. Haviam sido amantes, haviam sido amados, mas, por um daqueles desencontros, cada um foi para um lado. Mas nunca se esqueceram. Viveram, casaram, ganharam, perderam. Mas nunca se esqueceram. E nunca se reencontraram.

Até semanas atrás. Ele e ela. Casados, se esbarraram. E o tempo voltou. Com ele, a paixão. Resistiram no começo, disfarçando a fome em “como você está?” e o amor em “e o trabalho?”. Mas não enganaram por muito tempo. Não se enganaram por muito tempo.

Passaram a se ver. Escondidos. Escondidos do mundo. Na mente, a sensação de estar fazendo algo errado. Na alma, a certeza de estar fazendo o certo. E se amaram novamente loucamente. Na cama. No chão. Em pé. Em gritos loucos, em gemidos roucos, em explosões e tornados. e dormiam juntos, depois, em águas plácidas e cristalinas.

E conversavam horas na cama, se amando entre um assunto e outro. Não era saudade. Não era amor. Era mais. Era... Era... Não sabiam definir. Era algo só deles, sem nome, sem rótulo, sem fim.

Mas, como tudo que não tem fim, tem fim. Não dava mais. Haviam rompido uma barreira, que, como a paixão, era maior que eles. Mas precisavam deixar uma vida inteira para trás. Família. Filhos. Sonhos que poderiam se romper como um cristal.

E, numa tarde quente, decidiram que seria a última vez. Amaram-se desesperadamente, instintivamente, tentando em vão se despedir. Olharam dentro dos olhos e se reconheceram. Menino e menina, sempre para sempre. Nunca iriam embora. Nunca iriam embora do outro.

Mas haviam concordado em ir.

E, na estação, esperando pelo trem que a levaria para casa, ele a olhou. Ela olhou para ele. O tom amargo de despedida. Havia tanto para falar. Havia tanto para ouvir. Tudo poderia mudar. Era o último momento. Era o tudo ou o nada. Ele tinha tanto a dizer para ela e ela a ele. A vontade de pularem sobre a mesa, se abraçarem e chorarem “não vai” era enorme.

Ele abriu a boca para dizer algo, na mesma hora que ela começou a dizer. Sorriram. Tanto a dizer. Tanto a viver.

Olharam-se por mais alguns instantes. Não faz diferença qual dos dois respirou fundo, pronto para dizer tudo o que precisavam. Não faz diferença porque nunca foi dito. Porque eles não contavam com aquele homem de meia idade e segurando um jornal que, acreditando que os dois não se conheciam, pediu licença e se sentou à mesa.

Abriu o jornal enquanto os dois se olhavam. Desesperados. De amor, de saudade, de tristeza.

Um apito soou. Era o trem dela.

Ele mordeu os lábios de ansiedade. Ela o olhou com lágrimas. O homem virou a folha do jornal e pigarreou.

No tempo congelado, se amaram uma última e triste vez, com os olhos. Em silêncio. Ela sorriu amarga e se levantou. Partiu em direção ao trem. Ele não a seguiu com os olhos. Ficou observando o lugar vazio, imaginando-a ali.

O homem abaixou o jornal e perguntou casualmente:

– Você sabe que horas são?

Sem tirar os olhos da cadeira vazia, respondeu.

– Sei. É tarde demais.

Levantou-se e sussurrou "adeus", baixinho, sabendo que ela ouviria. Com os ombros pesados, voltou para casa. Nunca mais se viram.

Perderam-se, junto com aquela última frase que nunca foi dita.


(Inspirado no filme
Desencanto, de David Lean.)

8 leitores:

Tyler Bazz disse...

demais!

Certeza que eles se encontram de novo, sem querer, ainda...

Renata Santos disse...

Li uma vez. Li de novo. Da segunda vez tinha um fundo musical. Assim:
"Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil sem você
Porque você esta comigo
O tempo todo
E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua
E se entregar é uma bobagem...
Já que você não está aqui
O que posso fazer
É cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos,
Lembra que o plano
Era ficarmos bem..."
Lindo texto, Rob. Verdadeiro. Mas como o Tyler, sou uma romântica incurável. Eles se encontrarão novamente, quem sabe no tempo certo, e aí... será outra estória.

Melinda Bauer disse...

Rob...Rob...vai me obrigar a assistir o filme!!
Adorei!!

Ana disse...

Estava com saudade dos textos do Chronicles.

Jullia A. disse...

achei poetico. (:

Mih disse...

Nossa, eu acabei de ler e senti um vazio, como se eu estivesse me despedindo de alguém que amo. Acho que é o melhor texto que li ultimamente - e olha que eu tenho lido bastante.

Dá licença, vou ali na locadora alugar "Desencanto".

Varotto disse...

"Na mente, a sensação de estar fazendo algo errado. Na alma, a certeza de estar fazendo o certo."

Sublime!

Mari Hauer disse...

Se nao tivesse uma nota dizendo que tinha sido inspirado no filme, eu apostaria que tinha sido inspirado na minha vida, lah por meados de abril. Tanta coisa minha, que passou, que ficou. Coisas que nem sei se alguem sabe ou consegue dizer...

Li esse texto e lembrei de tanta coisa. Voltei no tempo, ri, senti nostalgia e explodi em lagrimas. Lembrei que felicidade nao tem formulas e a gente nunca sabe se estah fazendo certo ou errado.

Sei se esse texto nao eh de hoje, mas sei lah porque, hoje eu resolvi ler. Em silencio e sozinha, longe da minha casa de verdade, numa sala vazia, esperando pra fazer prova. Longe dos meus sonhos, da minha casa. Sabendo que jah me perdi tambem de tanta coisa. Mas acreditando que vou voltar a me reencontrar. Mesmo que tanta coisa tenha ficado pelo caminho.

Obrigada por me ajudar a remexer tanta coisa que andava por aqui!

 

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