6 de abril de 2010

O Palhaço e a Equilibrista

Era um circo decadente que sobrevivia percorrendo as cidades do interior. Sua lona envelhecida, já havia visto dias melhores e o mesmo poderia ser dito sobre as jaulas e os animais. Mas, ainda assim, resistia bravamente ao tempo e percorria o país, em cidades cada vez menores.

Alguns de seus artistas haviam se juntado à trupe ao longo dos anos. Crianças românticas e sonhadoras que escapavam de suas casas, no meio da madrugada, decididas a ganhar a vida na estrada, de forma quase anônima, sem saber em qual cidade estariam na semana seguinte.

Entre elas, a Equilibrista.

Sua apresentação era uma das mais esperadas. Assim que aparecia trajando seu maiô prateado e começava a subir a escada que a levava quase aos céus, choviam aplausos, devidamente ignorados por ela. E, lá em cima, solitária nas alturas, desfilava sua beleza e seu talento.

Arriscava a vida andando na corda bamba, metros e metros e metros acima do chão. Caminhava com pretensa dificuldade, com cuidado para não cair, deixando a plateia com a respiração presa e gritando de emoção. Seu semblante, sempre sério e concentrado, ignorava as pessoas abaixo dela. Ela enxergava apenas a corda. Enxergava apenas o caminho que precisava seguir.

Outros artistas, porém, estavam no espetáculo desde que ele havia sido criado. Mal se lembravam de uma época de suas vidas em que o circo não existia

E entre estes, o Palhaço.

Ninguém sabia seu nome verdadeiro ou onde havia nascido. Era apenas o Palhaço. Na verdade, ninguém sequer sabia como era seu rosto, já que ele nunca tirava sua maquiagem, mesmo durante o dia, longe do picadeiro. Andava em meio às carroças e jaulas o tempo todo com seu rosto pintado emulando um sorriso. Assim, estava sempre sorrindo.

Antes de entrar no picadeiro, apenas retocava a maquiagem. Minutos depois, era rei. As crianças gargalhavam com suas cambalhotas, e os adultos voltavam a ser crianças. E corria e pulava e caía e se estatelava no chão. Provocava o domador de leões, tomava um drible dos cavalos e levava uma torta de creme na cara. E deixava o picadeiro sob uma chuva de gargalhadas.

Todos vibravam com o espetáculo da Equilibrista, menos o Palhaço, que, de um canto do picadeiro, observava atento.

Todos riam com o espetáculo do Palhaço, menos a Equilibrista, que, assim quem descia da corda bamba, corria para seu trailer.

E, tarde da noite, o espetáculo terminava e o público aplaudia.

Crianças segurando balões de gás e apertando a mão dos pais iam para suas casas, para sonhar com o circo. Namorados fugiam de mãos dadas para a praça. Aos poucos, as famílias iam se afastando, deixando o silêncio tomar conta do picadeiro, até que, finalmente, as luzes se apagavam, escondendo o brilho das bandeirinhas coloridas e o circo perdia sua vida.

E todos os artistas se reuniam para celebrar com bebidas e doces.

Todos. Menos o Palhaço e a Equilibrista.

Ela ficava em seu trailer, escondida.

Ele ficava andando sozinho em meio às jaulas.

Ambos afastados de todos. Presos em seu próprio silêncio.

Porque a Equilibrista não era equilibrista porque gostava de desafiar as alturas. Andava na corda bamba porque ali, no alto, estava longe de todos. Ninguém via seu rosto direito, ninguém a olhava nos olhos. Sozinha, ali no alto, ela podia ser ela mesma, chorar quando tivesse vontade, sorrir quando quisesse. A corda bamba era seu lar, era onde podia ser quem ela quisesse, e tudo o que queria era ser ela mesma.

E ninguém sabia disso.

A não ser o Palhaço, que, apaixonado por ela desde que a conheceu, não se conformava com o fato de que ela não sorria. E ele passava os dias pensando em como poderia fazer todas as pessoas felizes menos aquela cuja felicidade era a única com a qual ele se importava. E jurava para si mesmo que trocaria todas as gargalhadas que havia recebido por um único sorriso dela. Sabia que ela não gostava de ficar no chão, mas jurava para si mesmo que jamais a deixaria parar de rir, se tivesse uma única chance.

E ela ia dormir sozinha, sonhando em ficar sozinha e em silêncio nas alturas para sempre.

E ele ia dormir maquiado, chorando por saber o segredo dela e não poder fazer nada.

E, no dia seguinte, acordavam.

A Equilibrista passava o dia em seu trailer, com seus sonhos de solidão, escrevendo seus poemas e fazendo seus desenhos.

O Palhaço passava o dia andando pelo circo, amaldiçoando o fato de alegrar o mundo inteiro, mas não ser suficiente para ela.

E, à noite, voltavam ao picadeiro. Ela subia aos céus, ele se atirava ao chão.

E a platéia vibrava e sorria.

Mas, em algumas noites, algumas pessoas acharam ter visto a Equilibrista olhando para baixo e estudando o mundo sob seus pés, discretamente. E, em outras, havia aqueles que podiam jurar que O Palhaço chorava enquanto corria pelo picadeiro fazendo os outros rirem.

Mas eram apenas momentos perdidos naquele mundo de cores e luzes e sons. Ninguém deu muita atenção a isso.

E, no dia seguinte, outra cidade, outros aplausos.

Porque o espetáculo não podia parar.

4 leitores:

Marina disse...

"A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar..."

Mari Hauer disse...

O bom mesmo seria se a equilibrista fosse um pouco palhaço e o palhaço fosse um pouco equilibrista. Difícil deve ser, imagino, viver uma vida olhando o mundo do circo com distanciamento, de uma perspectiva sempre superior à de todos os outros. Talvez a equilibrista não saiba, sempre vestida com brilhos e com os pés acima do chão, que provocar risos às vezes é mais revigorante que deixar as pessoas com o coração na garganta, provocando tensão... Ah, se ela aprendesse com o palhaço... Quantos mundos ela não teria a oportunidade de conhecer! Talvez o palhaço, sendo um pouco equilibrista, pudesse ver a equilibrista como palhaço. Talvez ele visse que ela sorri sozinha quando planta os pés no chão... Mas palhaço que é palhaço sonha com quem está nas alturas e idealiza a equilibrista. Quantas risadas e sorrisos não passaram por ele enquanto ele entristecia em pensar no quão valioso era o riso da equilibrista?
Às vezes não nos permitimos olhar de outras perspectivas e isso é sempre triste, independente de onde se estiver. Viver fazendo o mundo sorrir mas querendo o que se está longe dos pés talvez seja tão ou mais triste do que viver alheio ao mundo. De fora, como platéia, a vida é sempre mais fácil, mesmo. O distanciamento nos permite enxergar as coisas como são, com menos idealizações e de uma perspectiva em que mesmo que parece voar longe, está mais perto, no mesmo nível. Uma visão do todo. Talvez o palhaço e a equilibrista devessem, um dia, sentar pra ver o espetáculo. E rir e chorar. Cada coisa no seu tempo, sentados um ao lado do outro.

Pati Bertucci disse...

bonito texto...

Pati Bertucci disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
 

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