15 de outubro de 2009

Borboleta

Era um botequim como outro qualquer, daqueles que você encontra em qualquer lugar da cidade. As paredes com ladrilhos amarelos eram decoradas com cartazes de cerveja, e suas mesas e cadeiras de plástico certamente já haviam visto dias melhores. Era um daqueles bares que, no final da tarde, tornavam-se habitados por diversos homens que se sentiam melhor ali do que em casa.

Mas o Sol ainda não havia se posto. Assim, o bar estava praticamente deserto, apenas os três estavam ali. Fernando, Gustavo, Isabela. Estavam no primeiro ano de faculdade, na mesma sala. Não eram amigos propriamente ditos, mas estavam bem encaminhados para isso. Conheceram-se havia dois meses, e às vezes, iam beber neste bar após a aula, pois o dono – um gordo com cara de português – não pedia identidade. Isabela ainda era menor de idade.

Pelo número de garrafas vazias acumuladas na mesa, bebiam já há algumas horas. Após conversarem sobre praticamente tudo - faculdade, letras de música, namoros, falta de dinheiro – caíram em silêncio. Faltava apenas um assunto, comum a todas as tardes que bebiam. Faltava falar sobre a vida. E foi Fernando quem começou.

– O bom mesmo é ser borboleta.

Isabela levantou os olhos, interessada com a declaração, mas permaneceu em silêncio. Seus olhos brilharam de leve, mas nenhum dos dois rapazes reparou nisso. Nem o dono do bar, que continuava atrás do balcão, enxugando os copos e distraído com a televisão.

Como Fernando não continuou o assunto, Gustavo, intrigado, tirou o copo da boca e perguntou:

– Oi?

– Borboleta, sabe?

– Sei, claro. Borboleta. O que elas têm de especial?

– Ontem eu vi na TV um documentário sobre as borboletas. E acredite no que digo, bom mesmo é ser borboleta.

Isabela se recostou na cadeira e começou a prestar mais atenção, brincando com o isqueiro na mão. Fernando deu mais um gole na cerveja e continuou:

– Imagine uma borboleta.

– Ok. Imaginei.

– Quer dizer, uma borboleta não. Imagine antes de ela ser uma borboleta.

– Hã?

– Uma lagarta.

– Lagarta?

– Isso, antes de ela ser borboleta, ela é lagarta, certo? Imagine uma lagarta.

– Imaginei.

Isabela continuava prestando atenção. Seus lábios finos e delicados esboçavam um sorriso, mas ela se segurou. Fernando continuou:

– A lagarta passa os dias se arrastando pelas folhas, comendo e crescendo, esperando somente o momento de se transformar em borboleta.

– Sim. Eu sei disso.

– E você sabe o que acontece depois?

– Ela vira borboleta?

– Não! Ela ainda se fecha naquele casulo e fica ali, se transformando. Ela não vira borboleta da noite para o dia!

– Ah não?

– Evidente que não. Você acha que é como trocar de roupa? Ela tira a roupa de lagarta, veste as asas e vai voar? Claro que não! Ela precisa se transformar. Isso demora tempo.

Isabela precisou se esforçar para segurar o sorriso. Mas continuou ouvindo atentamente.

– Quanto tempo?

– Não sei, nessa parte tocou o telefone e eu tive que atender, então perdi esse pedaço. Mas demora bastante tempo.

– Bom, e aí, ela vira borboleta?

– Sim, mas só depois de bastante tempo. É aí que eu queria chegar. O que ela faz quando vira borboleta?

– Não lembro direito, tem algo a ver com pólen.

– Não! Não é isso! Isso é ciência, não estou falando disso!

– Fernando, você está falando de quê?

– De vida. Aliás, vida não. Vida, com V maiúsculo.

– Você está bêbado.

– Não, é sério, escuta. Depois que ela vira borboleta, ela voa! Ela sai de manhã cedo do casulo e sai voando. Imagine o que ela não vê.

– Mas tem o lance do pólen, sim.

– Esquece o pólen! Ela voa pelos jardins, pelos quintais, vendo, lá do alto, o chão pelo qual ela se arrastava dias antes. Ela vê tudo com outra perspectiva, com outro olhar. Ela voa, cara! Ela vê tudo de cima, e voa com o vento, contra o vento, pousa em todas as flores que quiser, em todas as plantas que escolher. Ela voa! Se você pudesse voar, você não voaria?

– Claro.

Os olhos de Isabela brilhavam intensamente. Ela não conseguia tirar os olhos de Fernando, que deu mais um gole na cerveja e prosseguiu:

– E sabe quanto tempo ela vive como borboleta?

– Não faço idéia.

– Um dia.

– Um dia?

– Um dia. Ela sai do casulo de manhã cedo, e morre no final da tarde.

– Mas só um dia?

– Só um dia. Nada mais.

– Cara, é triste demais. Um dia. Tudo aquilo, lagarta, casulo, para poder voar só um dia.

– Não é triste. Pelo contrário.

– Claro que é triste.

– Não é. É só um dia? É só um dia, admito. Mas é um dia fantástico. É um dia que ela nunca teve igual. Que ninguém nunca teve igual. É um dia que você realiza toda a sua vida, é um dia que você faz o que quiser, livre de tudo. É um dia que ela é completa.
Os olhos de Isabela se encheram de lágrimas, e ela os secou disfarçadamente.

– É... Tem razão.

– Pensa comigo, Gustavo. Para que outro dia depois desse? Não precisa. É uma vida inteira em um dia. Uma vida inteira!, gritou, batendo a mão na mesa. O dono do bar olhou feio para eles.

Os dois ficaram quietos pensando sobre isso. Isabela brilhava. Foi Gustavo quem rompeu o silêncio, levantando o copo e propondo um brinde:

– Às borboletas.

– Às borboletas, respondeu Fernando, repetindo o gesto.

Beberam. Poucos minutos depois, Isabela avisou que precisava ir embora. Juntou suas coisas e se despediu. Antes de virar de costas, arrumou a blusa com cuidado para esconder a tatuagem que havia na parte inferior das suas costas: uma pequena borboleta, animal que sempre admirara, desde criança.

Naquele dia, ela soube que, um dia, Fernando iria ver sua tatuagem. Que ele era a pessoa por quem ela procurou anos, sem saber ao certo disso.

Naquele dia, ela soube como seria o dia em que ela poderia voar. Saiu rapidamente do bar, tomando cuidado para a blusa não subir. Saiu do bar com os olhos cheios de lágrima e correu para casa.

Queria apenas entrar na crisálida e esperar.

12 leitores:

Marina disse...

No momento, sonho com o sonho de ser borboleta. De ter um dia pelo qual esperar.

Lindíssimo texto, Rob.

Cami Pires disse...

"É um dia que ela é completa." Eu levo duas borboletas comigo...

Varotto disse...

Bonito...

Só tem um probleminha com essa história de borboletas que vivem apenas um dia. Não é assim não (estragaprazeres mode: ON)

Varotto disse...

Quero dizer, pensando bem, elas poderiam ser capturadas por um colecionador, ou irem de encontro a um para-brisas em alta velocidade, e morrerem no mesmo dia.

Mas vão ser azaradas assim lá na PQP!

Jullia A. disse...

romantico. nao de romance. de romantico, entende?
Romantico que nem a vida.
Eu particularmente acho que a gente vive várias borboletas por vida. como se por cada experiencia a gente precisasse rastejar, formar um casulo e depois analisar de um ponto de vista diferente.Não sou muito boa pra explicar. Mas na minha cabeça faz super sentido.Qualquer dia eu tento emplicar. não em um comentário. ahisudh
muito bom o texto.

Lua Durand disse...

"Para que outro dia depois desse? Não precisa. É uma vida inteira em um dia. Uma vida inteira!"
-
Pois é, apenas um dia, e o tudo de uma vida inteira...
Que pena que para nós, homens, um dia ainda parece pouco.
Um dia, pode ser a vida inteira.
-


Ainda bem que esse blog existe. Mesmo que um dia você pare de escrever, decida jogar tudo pro ar, mesmo que nunca mais venha aqui, não apaga nada daqui. Tá, publica um livro, depois, mas não apaga.

-

=)

May. disse...

Olha, depois de ler esse texto, eu só tenho mais motivos pra continuar indo nos "barzinhos" (mas coloca muitas aspas, pq chamar assim é ser muito, mas muito legal)

Achei maravilhoso. O jeito como vc escreve sobre as coisas só torna tudo mais bonito. =)

Tyler Bazz disse...

Essa Isabela entendeu tudo, tudo!
*.*

Lari Bohnenberger disse...

Ah, que lindo!
Quase chorei também, aqui!
Bjs!

Anônimo disse...

É a lição da borboleta mais atual, bela, verdadeira (e porque não dizer cotidiana?) que já li!.
Ousando...digo que faltou nesse bar aqueles ovos rosas.
#beijojávou

Layla Barlavento disse...

Também quero sair do casulo um dia... Vou esperar assim como Isabela.

Isabella disse...

Querido Rob,

Sou também Isabella e sou fascinada pelo mistério das borboletas como Fernando.

Divido com você uma das minhas músicas prediletas:
http://www.youtube.com/watch?v=1TUsPQDKw8U

E os trechos que mais me dizem. E que tanto se encaixam com seu texto:

"Imantar os meus anseios
Da dor das asas negras
Da borboleta o espelho
De amores que expiram cedo
A folha a corredeira leva
A árvore... não cairá"

...

"O derradeiro, primeiro dia que há
Breve, atreve terminar no principiar
Borboleteio, lhe almejo emoldurar
Dança na fuga pra ver o seu único luar"

Você sempre me emociona!

Um beijo...

 

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