13 de março de 2007

Olhos nos Olhos

Dois casais sentados na minha frente, mas eu mal os via, entretido com meu jornal. Apenas sabia que eles estavam ali: um deles sentado sob a TV, que transmitia um jogo de futebol qualquer; o outro, mais afastado, de forma que ele pudesse ficar com os olhos vidrados no jogo.

Na mesa ao meu lado, um gordinho devorava seu jantar com os olhos perdidos no infinito, pensando sabe-se lá o quê. E eu, lendo.

– Filho de uma puta!

O bar inteiro olhou. Inclusive eu. Era o homem que estava com os olhos vidrados na TV, acompanhando o jogo. Ele não se intimidou com os olhares e completou:

– Falta porra nenhuma! Filho de uma puta!

Sua namorada olhou ao redor envergonhada. Seu rosto deixava claro que não estava vivendo aquilo pela primeira vez. Deixei o jornal de lado e passei a observá-los. Ele não desgrudava os olhos da TV. Ela, jogada de lado, passava o tempo raspando um palito de dentes na mesa, em silêncio. A única vez que ele dirigiu a palavra para ela foi quando ele perguntou, da forma mais carinhosa que ele conseguiria, mas olhando nos olhos da garota:

– Quer mais uma cerveja?

E foi assim, até o juiz apitar o final do primeiro tempo. Na mesma hora, ele sacou o celular e discou para alguém, provavelmente um amigo, e começou a anda pelo bar, afastando-se da mesa e a conversar sobre o jogo no telefone. Ela ficou sozinha na mesa, sabendo que a única coisa que o traria de volta seria o início do segundo tempo.

– Falta porra nenhuma!, gritou, dessa vez no fone, lá no fundo do bar.

A namorada ali, apenas raspando o palito de dentes na mesa. Decididamente, não era a primeira vez.

Subitamente, outro berro interrompeu o comentarista esportivo, que discorria sobre algum lance do jogo – provavelmente, a tal “falta porra nenhuma”:

– Eu derrubeeeeei zervexa no meu colo pela segunda vexxxx!

Era a mulher do casal que estava sob a TV. Totalmente embriagada, para o constrangimento do namorado que, – como eu já tinha reparado –, ficava a maior parte do tempo com os olhos baixos, talvez sem coragem de olhar para si próprio. Desta vez, o fato de não ser a primeira vez era claro, já que ela mesma anunciara isso em alto e bom som para o bar inteiro.

Ele rapidamente tentou limpar a calça dela com um guardanapo, mas ela afastou a mão dele, dizendo:

– Voxxxxxê vai zujar tudo! Deija que eu limpo!

Levantou-se e foi cambaleando até o banheiro, deixando na mesa o namorado visivelmente abatido.

Não éramos mais eu, o gordinho e dois casais.

Éramos eu, o gordinho e dois solitários, que provavelmente já não tinham mais esperança de se livrar daquele casulo em que viviam. Ambos tinham aquele olhar meio vago de quem já entregou os pontos e passa o resto da vida carregando o “bem, é melhor que nada” nas costas.

Provavelmente, nenhum dos dois havia sonhado com aquilo para si, mas foi justamente aquilo que a vida ofereceu a eles, fazendo eles abdicarem de qualquer sonho que já tiveram. E, com o tempo, eles se recostaram na esperança de que um dia as coisas melhoram. Tinham que melhorar. Mas não melhorou. Pelo menos, até agora, não.

Porém, num momento, que não deve ter durado mais que poucos segundos, os olhos dos dois se cruzaram.

Imediatamente reconheceram-se um no outro. O mesmo olhar sem brilho, a mesma expressão conformada e levemente amarga.

Olharam-se, assustados e, então, fizeram algo que nem lembravam mais que sabiam fazer: sorriram. Sorriram parceiros, cúmplices, aquele jeitão de “eu sei o que você está passando”. E, subitamente, o sorriso transformou-se num olhar “seria diferente, né?”.

Seria. Certamente que seria. Os olhares deixavam isso claro.

E olharam-se sorrindo, por mais alguns momentos, pensando em porque não haviam se encontrado antes, de outra maneira, em outra ocasião, em outra vida. E não agora, com tudo daquele jeito, tudo já tão estragado. Inclusive eles mesmos.

E maldisseram a vida em silêncio, já não se dando mais ao trabalho de entender o porque de as coisas sempre acontecerem dessa maneira besta. Mas continuavam se olhando, aquele brilho de “poderia dar certo” nos olhos e aquele sorriso que as pessoas dão, as vezes, sem perceber que estão sorrindo. E se deram ao direito de sonhar, juntos e em silêncio, por alguns segundos.

Até que o namorado dela voltou para assistir ao segundo tempo, ainda falando no celular. Logo em seguida, a namorada voltou e deixou seu corpo meio bêbado cair na cadeira, com a perna da calça toda molhada e fedendo a álcool.

A vida voltou ao normal.

Ela continuou bebendo e gritando ao lado do namorado com os olhos baixos; ele continuou xingando o juiz e lateral-direito do time, ignorando a namorada e seu palito de dente na mesa.

A vida voltou ao normal. Infelizmente, para alguns, a vida sempre volta ao normal.

Arriscaram mais um olhar em algum momento, mas não deu mais certo. O tempo deles, a única chance que tiveram de se levantar e saírem juntos do bar, sem avisar ninguém e nunca mais voltarem...

Esse tempo já tinha acabado.

Minutos depois, ela arrumou os cabelos distraidamente e os olhos delas bateram no meu. Eu ainda a olhava. E ela percebeu, então, que eu estava ali e me disse com os olhos:

– Você viu, não viu?

E eu, sem abrir a boca, respondi:

– Vi.

Os olhos delas se apertaram, apreensivos e ela continuou:

– Você que sabe de toda a história, me diga... Teria dado certo, não teria?

Não respondi. Não saberia como. Mas ela não precisava mais de resposta. Ela continuou me olhando, e, quando percebeu o que eu estava pensando, seus olhos me fizeram um pedido.

– Promete que vai guardar segredo?

– Prometo, meus olhos responderam.

Então ela se lembrou de que havia mais alguém ali. E eu também lembrei. Enquanto o namorado xingava o juiz e a namorada bebia mais um pouco, olhamos para o gordinho cabeludo. Ele continuava a comer olhando para o infinito, totalmente alheio a tudo.

O segredo deles estava seguro. Ninguém mais havia visto nada do que havia acontecido. Ela abaixou os olhos e me agradeceu com as pálpebras.

Meia hora depois, o rapaz, ainda com os olhos baixos, foi embora em silêncio, ao lado da namorada cambaleante. Minutos depois, o jogo acabou e ela foi-se embora com o namorado, que, novamente, falava sobre o time no celular.

Nunca mais se viram. Nunca mais se esqueceram.

Teria dado certo.

12 leitores:

Descharth disse...

"A vida voltou ao normal. Infelizmente, para alguns, a vida sempre volta ao normal."

A difícil arte de resumir uma sensação complexa em uma só frase...

Mr.Gordon,nem sei quantas foram as vezes em que eu me deparei com esses amores de instantes que se pulverizam quase que de imediato.

O olhar mágico que em frações de segundos nos remete à um futuro onírico, em que nos vemos distantes do que transformamos nossas vidas.

O Olhar mágico que se desfaz ao leve piscar das pálpebras,que não resiste a corvardia e ao medo sermos felizes.

Eduardo Vilar disse...

eu não entendo porque essas coisas tem de continuar em segredo...
acho que me pergunto isso todo dia.

Isadora disse...

a gente sabe que vai dar certo quando a vida nunca mais volta ao normal. nem volta, nem poderá voltar.

aí mora a graça.

Juliana Marchioretto disse...

ah, eu adorei esse texto!!!
adorei mesmo, sensível e real...


beijo

Abel disse...

Simplesmente perfeito ...
Como todos os seus textos ...

Fábio Farias disse...

muito bem construido, a narrativa, os personagens e a situação :) realmente prendo o leitor. Parabens.

Unknown disse...

Cara, muito bom seu blog! Parabéns!
Sempre q puder vou passar por aki!
To te add nos favoritos.
Falow, até mais.

Bruno Amatuzzi disse...

Tb gostei do texto. Real, como as mil paixões instantâneas e fugazes de nossas vidas. Abraços e parabéns, Bruno.

M. disse...

OK, definitivamente gostei mais daqui.

_gDaRu_ disse...

Sl pq mas toda vez que leio esse texto, me vejo nele.

Excelente.


Abandonou aqui?
Abraço.

ByVJ disse...

espero q continue assim!
rs...
valeu!

La disse...

Olhos nos olhos... teria dado certo... são frases que sempre me remetem a alguém muito querido. Assim como este texto. Querido, por ser especial, atemporal. É um texto que sempre me faz parar, e pensar... "até que a vida volte ao normal". Congrats.

 

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