22 de janeiro de 2007

Eternidade

O silêncio era quase palpável, cercando a enorme massa humana que não se movia. O lugar parecia um túmulo, ou uma cena daqueles westerns clássicos onde o barulho do vento serve como moldura para a cidade que assiste a um duelo. A tensão no ar cercava as pessoas, espremendo-as ainda mais no já limitado espaço. Apenas o som distante de um ou outro rádio que, como uma pessoa que chora baixinho e escondido num funeral, desafiava o silêncio.

E, no meio desse silêncio, Jorge tentava acompanhar o que se passava à sua frente sem enlouquecer. Mas a tarefa era difícil. Dezenas de cabeças na sua frente atrapalhavam sua visão, impedindo que ele pudesse ver direito o que acontecia, e, como se não bastasse, a ansiedade que vivera inúmeras vezes durante os últimos meses voltou a marcar presença, dando um nó no seu estômago.

E nada acontecia.

Jorge tentou manter a calma, pensando que, de um jeito ou de outro, tudo acabaria agora. Por bem, ou por mal. Mas o nó que apertava seu estômago começou a mexer com seus outros órgãos e isso, somado com a multidão ao seu redor, fez com que ele sentisse medo de desmaiar, ali, na frente de todos. Não! Não importa o que acontecesse, ele tinha que ser forte, não podia desmaiar ali, como se fosse um adolescente. Ele era um homem adulto e já havia passado por isso antes.

Pensou em Maria Eugênia, torcendo para que isso lhe fizesse suportar o pior. Isso sempre funcionou para Jorge, desde que se conheceram, quase 30 anos atrás. Pensar na esposa o confortou um pouco. Numa fração de segundos, lembrou-se da primeira vez que a encontrara. Ela vestia uma blusa amarela e estava numa sorveteria com a irmã. Lembrou-se do primeiro beijo, do casamento, da lua-de-mel em Porto Alegre – ela insistiu, pois a família dela era de lá – e do nascimento da filha Juliana, meses depois.

E nada acontecia.

Vendo sua vida inteira desfilar na sua frente, Jorge lembrou de todas as brigas que tivera com ela. Sorriu nervoso ao perceber que, na maioria delas, ele era o culpado – menos quando ela cismou que ele estava saindo com uma estagiária do banco. Sentiu ódio ao lembrar da história que quase acabou com o casamento dele. Juliana era pequena e chorava ao ver os pais brigarem de madrugada. E pensar que tudo havia começado quando os colegas do banco começaram a brincar com o fato da garota ter sorteado o seu nome para festa de amigo secreto no final do ano. Só a Maria Eugênia, mesmo, para pensar uma bobagem daquelas. Se bem que a garota era bonitinha, onde será que ela anda agora?

E nada acontecia.

De repente, Jorge percebeu que a fagulha de uma tragédia em potencial havia passado pelas suas lembranças, mas não soube identificar o que era. Mas, no meio de seus pensamentos, algo lhe causou um certo desconforto físico. Devia ter sido apenas um presságio, ou algo... Não! Os colegas do banco! Jorge entrou em pânico. Sentiu o suor frio descer pelo seu rosto já na meia-idade ao lembrar dos colegas e imaginar o que aconteceria com ele no dia seguinte, no banco, se o pior acontecesse ali. Perderia completamente o respeito, passaria dias e dias na mais profunda miséria emocional.

Seus colegas, alguns que ele inclusive conhecia há anos, não perdoariam isso jamais e transformariam sua vida num inferno pelos próximos dias. Ninguém ali entenderia sua paixão ou respeitaria a sua dor. Quando muito, iriam dirigir silenciosos olhares de pena para ele.

Começou a pensar nas desculpas que poderia usar para não poder faltar no trabalho amanhã, mas perdeu completamente a atenção quando o som de um apito, ao longe, chamou sua atenção.

Seu estômago revirou. Um leve pensamento sobre o caráter desumano que era decidir toda a sua existência em apenas um instante começou a se formar em sua mente, mas ele passou tão rápido que mal chegou a tomar forma, deixando apenas uma vaga sensação de injustiça na sua alma. Não entendia porque as coisas tinham que funcionar assim. Começou a sentir uma sensação de tontura e o pedaço do seu corpo que um dia ele chamou de estômago começou a se retorcer de ansiedade.

Congelado, olhando estático o que acontecia à sua frente, ele era apenas mais um no meio da multidão, mas sabia que era a sua vida que estava sendo decidida ali. Toda a felicidade que ele sonhara nos últimos meses, e que ele sabia que era dele por direito. Ninguém podia tirar isso dele. Não era justo que alguém tirasse isso dele!

Ignorando o suor que encharcava sua roupa e o gosto amargo na boca, olhou para a frente bem a tempo de ver o goleiro do seu time conseguindo, com a ponta dos dedos, desviar o pênalti cobrado pelo adversário e impedir que a bola entrasse no gol.

O estádio explodiu numa gritaria só, um urro de felicidade orgástica que estava entalado na garganta daquela única pessoa formada por quase cem mil torcedores. Em meio a gritaria, Jorge, com os olhos cheios de lágrimas, sendo empurrado pelas pessoas que pulavam histéricas ao seu redor, sentiu o sabor da vitória na boca. Percebeu que aquela noite, ele dormiria bem, um sono tranqüilo. Mas sabia que, quando chegasse em casa, horas depois, sua filha Juliana o cumprimentaria sem desviar os olhos da TV, como se nada tivesse acontecido com ele durante toda a tarde. E, Maria Eugênia, como de costume, reclamaria que ele não tem mais idade para ir assistir aos jogos no estádio, ainda mais em final de campeonato, que é “perigoso demais”, como ela sempre diz.

Pensando bem, quem sabe ela tenha razão. Mas, por outro lado, até a final do próximo campeonato, vai demorar quase uma eternidade mesmo. Até lá, ela já esqueceu disso...

1 leitores:

Unknown disse...

Vim aqui conhecer o seu trabalho. E só pra deixar marcado o primeiro que li. Amei demais.

 

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